Autor: Gavin Hyman
Tradução: Desiderio Murcho, no livro Um mundo sem Deus: Ensaios sobre o ateísmo (pp. 27 à 42)

Índice:
Ateísmo na antiguidadeParte 01Parte 02
Ateísmo na história modernaParte 01Parte 02


Em Outubro de 1632 a pequena cidade de Loudun, no coração da França, foi agitada pela crença de que as freiras do convento ursulino da cidade estavam possuídas por demônios. Nos meses e anos seguintes, à medida que os gritos e guinchos das desafortunadas freiras se tornavam mais fortes e as contorções dos seus corpos mais obscenas, Loudun tornou-se célebre à medida que um cortejo de padres, médicos, políticos e turistas vinham testemunhar por si o extraordinário espetáculo. A possessão não foi de curta duração e a execução do suposto feiticeiro, o pároco Urbain Grandier, não trouxe o fim que algumas pessoas esperavam. O exorcismo de padres e as diligências de médicos tinham pouco efeito e não parecia haver esperança de redenção até o Santo Padre Jean-Joseph Surin ter chegado a Loudun em Dezembro de 1634. Em poucos meses, a madre superiora, Jeanne des Anges, livrou-se dos seus demônios, apesar de se ter anunciado que o último demônio só saiu em 1637.

No seu estudo alargado deste episódio singular, o historiador francês Michel de Certeau não é tão incauto a ponto de “explicar” definitivamente estes acontecimentos (nem provisoriamente). Mas interpreta-os como, entre outras coisas, um “sintoma” de um trauma — o que se poderia descrever como o trauma do nascimento da modernidade. Afirma que a “crise diabólica” (da qual a possessão de Loudun foi apenas um caso) “não é apenas um objecto de curiosidade histórica. É o confronto (um entre outros, apesar de mais visível) de uma sociedade com as certezas que está a perder e com as que está a tentar adquirir.” Uma das certezas que esta sociedade está a perder é o teísmo, e de Certeau vê na possessão uma expressão indireta de ansiedade e medo reprimidos perante a dúvida e a blasfêmia. Essa dúvida estava a tornar-se então uma característica comum da sociedade, emergindo o ateísmo como um fenômeno reconhecido, de um modo que um século antes era inédito. Aparentemente, o ateísmo é uma característica ou sintoma da modernidade que está traumaticamente a nascer. Poder-se-ia dizer que se o teísmo é uma das certezas que esta sociedade está a perder, então o ateísmo é uma dessas certezas que está a tentar adquirir. Nesta acepção, o ateísmo é um aspecto inevitável da modernidade; o ateísmo e a modernidade parecem inextrincavelmente ligados. Um dos objetivos deste capítulo é
examinar a natureza precisa desta ligação. Mas antes de o fazer, é necessário dar alguma
atenção a questões de definição.

Disputas sobre o que constitui o “moderno” ou a “modernidade” têm sido longas e tortuosas, e não é provável que uma qualquer definição receba aceitação universal. O que parece razoavelmente incontroverso, contudo, é dizer que a velha compreensão de “moderno,” que o tornava praticamente sinônimo com “contemporâneo,” foi eliminado a favor de uma compreensão do “moderno” como um “modo de pensar” ou “sensibilidade” particulares, tendo algumas características distintivas. Que características afinal são estas é algo que varia entre esferas de pensamento ou atividade. Consequentemente, a procura de uma definição omniabrangente do “moderno” que faça justiça às muitas e diversificadas compreensões da modernidade na arte, arquitetura, literatura, filosofia, música, política e economia (para nomear apenas algumas) pareceria malfadado desde o início. Qualquer caracterização abrangente do moderno será em consequência inevitavelmente inadequada. Com isto em mente, contudo, caracterizei alhures provisoriamente o moderno como um “desejo de um domínio omniabarcante da realidade por meios racionais e/ou científicos.” Apesar de não fazer de modo algum justiça às diferenças subtis que muitas pessoas pensam corretamente serem essenciais para compreender o “moderno” em várias esferas do pensamento, esta caracterização pelo menos não é enganadora quanto ao desejo dominante da sensibilidade moderna. É um desejo que se torna evidente e cada vez mais dominante a partir do séc. XVI e que permanece forte até cerca de meados do séc. XX, quando começam a insinuar-se sinais de uma crise na autoconfiança da modernidade. Esta compreensão do moderno será aprimorada e delimitada ao longo deste capítulo, mas serve como uma indicação provisória do que tenho aqui em mente com o moderno.

O significado de “ateísmo” só é ligeiramente menos contencioso. À primeira vista, pareceria mais direto, pois o termo pode ser definido (com menos limitações do que as necessárias para o termo “moderno”) como “a crença de que Deus não existe.” Mas imediatamente vemos que, como o termo “pós-modernismo,” o próprio termo “ateísmo” “posiciona o fenômeno como relacional. [O teísmo], enquanto aquilo do qual [o ateísmo] se liberta permanece inscrito na própria palavra com a qual [os ateus] descrevem o [seu] distanciamento relativo [ao teísmo].” Consequentemente, a nossa compreensão do ateísmo só pode ser direta e sem ambiguidade se a nossa definição de teísmo for direta e sem ambiguidade. Pois o ateísmo define-se em termos do que está a negar. Daqui segue-se que se as definições e modos de compreender Deus mudarem e variarem, também as nossas definições e modos de compreender o ateísmo irão mudar e variar. Isto significa complementarmente que existirão tantas variedades de ateísmo quantas as variedades de teísmo. Pois o ateísmo será sempre uma rejeição, negação ou recusa de uma forma particular de teísmo. Como veremos, isto é mais do que apenas uma questão de nomenclatura e definição; as implicações têm um alcance potencialmente muito maior. Pois há quem argumente que o ateísmo moderno depende de uma forma de teísmo peculiarmente moderna e inovadora, que em muitos aspectos é muito diferente do teísmo anteriormente prevalecente. Se isto for assim, levanta algumas questões importantes. Será que a concepção de ateísmo distintamente moderna que emergiu no início do período moderno foi uma distorção tão grande do teísmo pré-moderno que se tornou insusceptível de ser objeto de crença e tornou o ateísmo inevitável? Além disso, se este mesmo ateísmo foi uma reação contra esta forma específica de teísmo, que implicações tem este ateísmo no que respeita a uma forma imoderna (pré-moderna) de teísmo, se é que as tem? Estas são questões a que me dedicarei em muito maior profundidade posteriormente neste capítulo. Mas primeiro é preciso examinar o fenômeno do ateísmo tal como surgiu na história moderna.

1. O "aparecer" do ateísmo na história moderna
Se, como sugeri e é comummente aceite, o ateísmo e a modernidade têm mais do que uma relação de coincidência, seria talvez de esperar que o ateísmo se tivesse manifestado mais cedo. Na verdade, emerge explicitamente e sem disfarces relativamente tarde. Certamente que o próprio termo surge no preciso momento em que os filósofos e os historiadores da cultura situam o nascimento da modernidade. Michael J. Buckley encontra o seu primeiro uso na Inglaterra no erudito de cultura grega Sir John Cheke, numa tradução de 1540 de Sobre a Superstição, de Plutarco, mas o ateísmo é aqui concebido como uma negação da intervenção da providência divina e não uma negação da existência de Deus. De fato, neste período, tanto na Inglaterra como em França, o termo “ateísmo” denotava habitualmente heresia e não uma negação sem rodeios do teísmo. À medida que a Europa Ocidental fez a sua transição traumática para a modernidade, contudo, o significado do termo transmutou-se muito
rapidamente para algo que nos é mais familiar. Michel de Certeau comenta que em França, no início do séc. XVII, o ateísmo tornou-se o centro não apenas de todo um corpo de literatura, mas também de medidas políticas, sentenças judiciais e precauções sociais contra os ateus: “Os “ateus” que começaram por ocupar o centro da polêmica eram os heréticos de todas as igrejas, os crentes inconformistas e outros que tais. Mas rapidamente a controvérsia passou a centrar-se na existência de Deus. Por volta de 1630, [s]urgem grupos de libertinos, eruditos e céticos; desaparecerão por volta de 1655 […] antes de reaparecerem por volta de 1680. O “ateísmo,” de que nunca se falava um século antes, tornou-se um facto reconhecido.” De Certeau comenta também que este fenômeno não se restringe aos letrados, encontrando-se antes em todos os níveis da sociedade.

Mas se há espíritos em Inglaterra e em França, no início da modernidade, que começam a ser afetados e invadidos por dúvidas, o termo “ateísmo” é usado mais à maneira de acusação, um termo insultuoso. Como termo de autodefinição, uma declaração da nossa própria crença (ou ausência dela), não aparece até meados do séc. XVIII, quando a encontramos entre intelectuais parisienses, particularmente Denis Diderot, que é largamente reconhecido como o primeiro filósofo ateu explícito e assumido. Como escreve Buckley, “em muitos aspectos, Diderot é o primeiro dos ateus, não apenas cronologicamente, mas também como primeiro e principal defensor e influência.” Diderot afirmava levar a física matemática de Descartes e a mecânica universal de Newton às suas conclusões lógicas. Libertou a primeira do que considerava a sua metafísica injustificada, e a última de uma ânsia de apontar para lá de si para princípios imecânicos. Ao fazê-lo, apresentou “a formulação inicial mas definitiva” do ateísmo: “o princípio de tudo é a natureza criadora, a matéria na sua auto-atividade, produzindo eternamente toda a mudança e todo o desígnio.” A importância de Diderot repousa também no facto de não poder ser posto de parte por ser um espírito malevolente ou frívolo. Pelo contrário, o ateísmo de Diderot era uma consequência da sua integridade intelectual e uma procura desinteressada da verdade. Além disso, Diderot chegou às suas conclusões ateias levando mais longe e intensificando as ideias sagazes de Descartes e Newton — os próprios pensadores de que os cristãos dependiam enquanto defensores modernos da fé.

Mas o reconhecimento explícito do ateísmo, por parte de Diderot, propagou-se lentamente. As conotações negativas da palavra —usada como termo insultuoso — persistiam ainda em pleno séc. XIX, e vieram a associar-se cada vez mais com a imoralidade e o desregramento, dois dos grandes medos da mentalidade daquele século. Isto levou quem não se sentia capaz de subscrever o teísmo ortodoxo a introduzir termos novos para se definirem a si mesmos, que lhes permitissem não ser contaminados pelo estigma do ateísmo. George Jacob Holyoke, por exemplo, preferia descrever-se como “secularista,” sendo a sua preocupação principal a necessidade de evitar ser considerado moralmente suspeito. Mas houve também outros factores na procura inteísta de um novo termo. Thomas Huxley, por exemplo, não gostava de “ateísmo” por ser demasiado dogmático; afirmava algo de definitivo sobre a inexistência de Deus, a favor da qual Huxley pensava haver poucos indícios. Além disso, parece que se associava cada vez mais o “ateísmo” com a política revolucionária de extrema-esquerda, o que manchava ainda mais o termo na sociedade requintada. Estas preocupações conduziram Huxley e os seus companheiros a introduzir um novo termo, “agnosticismo,” sugerindo que o termo não representava um novo credo, mas um desconhecimento metafísico. Daqui em diante, o agnosticismo iria rivalizar com o ateísmo como disposição intelectual alternativa para quem se sentia incapaz de professar uma crença no teísmo. Na verdade, Adrian Desmond chega até a afirmar que “à medida que o eixo social mudou no final do período vitoriano, o agnosticismo ia-se tornando a nova fé do Ocidente.”

Se era verdade, contudo, que se associava cada vez mais o ateísmo à política de extrema-esquerda revolucionária, não é difícil encontrar a fonte intelectual desta associação. No pensamento de Karl Marx, a revolução e o ateísmo andavam de mãos dadas. Não que o ateísmo fosse uma condição prévia da revolução mas, antes, que a revolução traria necessariamente consigo o ateísmo. Para Marx, o cristianismo era uma “ideologia” que emergia da base econômica da sociedade; tanto refletia como reforçava o capitalismo. Quando a base econômica do capitalismo se desintegrasse (o que ocorreria inevitavelmente, segundo Marx), então o cristianismo desapareceria simplesmente, por ser apenas um reflexo dessa base. Tanto para aspirantes a revolucionários como para quem a revolução era o seu maior pavor, Marx implantou uma conexão indelével entre a revolução de esquerda e o ateísmo (cujas sementes já tinham sido lançadas na consciência humana pela revolução francesa). Os resultados foram consideráveis e duradouros. Não só o ateísmo seria manchado pelo sangue, violência e revolução, como também o cristianismo seria considerado inerentemente conservador e reacionário, um defensor do status quo.

Apesar da crescente conexão do ateísmo com a imoralidade, presunção metafísica e revolução de esquerda, havia ainda quem apostasse em torná-lo uma perspectiva respeitável e aceitável. Um dos mais proeminentes foi Charles Bradlaugh, o primeiro ateu explícito e confesso do parlamento britânico. Só assumir o seu cargo no parlamento depois de um longo e duro braço-de-ferro. Para assumir seus cargos, os parlamentares tinham de fazer, sobre a Bíblia, um juramento de fidelidade à rainha. Só depois de várias outras falhadas conseguiu Bradlaugh finalmente ultrapassar este obstáculo. Lutou também para tornar o ateísmo aceitável na sociedade civil e, em particular, lutou pelo direito dos ateus a
Testemunhar em tribunal. Pouco mais procurava do que uma respeitabilidade neutra, e apesar de não ter de modo algum atingido este objetivo nos finais do séc. XIX, avanços consideráveis nessa direção.

Se, por volta do séc. XIX, o ateísmo estava finalmente a começar a levantar a sua cabeça enquanto posição intelectual respeitável, estava todavia ainda longe de ser um fenômeno cultural amplo, e permaneceu uma coutada da elite intelectual. Isto não significa que, à parte a elite intelectual, toda a gente estava cheia de fervor religioso. Pelo contrário, na Inglaterra vitoriana, por exemplo, as classes trabalhadoras tinham a má fama de serem irreligiosas (como o inovador censo religioso de 1851 de Horace Mann tornou óbvio). Contudo, não parece que as classes trabalhadoras fossem ateias ou positivamente anti-religiosas, mas antes que a sua atitude coletiva era a “indiferença.” Não é completamente claro como se deve interpretar essa indiferença. Seriam predominantemente crentes teístas que contudo desconfiavam de uma igreja classista e intimidante? Ou era a sua indiferença equivalente a um agnosticismo prático? Pode muito bem acontecer que as duas interpretações estejam corretas, numa certa medida, mas em qualquer caso parece que apesar de as classes trabalhadoras terem a má fama de serem irreligiosas, a confissão de ateísmo aberto era ainda comparativamente rara, mesmo entre elas.

À medida que o séc. XIX caminhava para o XX, contudo, a maré começou a mudar. Dois profetas prescientes, apesar de terem uma afinidade improvável, foram Friedrich Nietzsche e John Newman. Ambos consciente de que um novo espírito se agitava, e apesar de todas as pessoas ainda mal terem consciência, sabiam que este novo espírito teria consequências imensas. Como Buckley observa, “O que Nietzsche e Newman entreviram foi que a impotência religiosa, ou o desinteresse, não permaneceria um fenómeno privado ou individual, que isso caracterizaria cada vez mais o“ intelecto instruído da Inglaterra, França e Alemanha ”e que a sua efeito acabaria por se fazer sentir em todos os aspectos rotineiros da civilização. ” E contudo as profecias de Nietzsche e Newman só se realizariam cerca de sessenta anos depois. O que se pode descrever como a “era do ateísmo” (para usar a expressão de Gerhard Ebeling), não se tornou uma realidade até aos últimos quarenta anos do século XX.

Mas por volta dos anos sessenta do séc. XX, as previsões de Newman e Nietzsche realizaram-se. Pelo menos no ocidente abastado, emergiu uma “incredulidade radical” que era única, em termos dos critérios da história do mundo. Como escreve Buckley, “É crucial ver o carácter historicamente único da experiência contemporânea: a emergência de uma incredulidade radical que tanto pertence à consciência de milhões de seres humanos comuns como é a opinião do intelectual. Existiram ateísmos anteriormente, mas há uma novidade, algo de distintivo na negação contemporânea de deus, tanto quanto ao seu alcance como quanto à sua instituição cultural.” Logo, se há uma conexão necessária entre “modernidade” e “ateísmo,” parece que estamos agora em posição de dizer algo provisório sobre a natureza desta ligação. Pois não parece que a sensibilidade moderna traga sempre consigo uma entrega necessária ao ateísmo. Pelo contrário, a primazia cultural, filosófica e científica da “modernidade” tinha já sido estabelecida séculos antes de o “ateísmo” se ter tornado um fato amplamente reconhecido. Logo, em muitos aspectos, parece melhor ver a “modernidade” não como uma entidade estática, mas como uma sensibilidade ou processo em movimento perpétuo para diante, sendo o seu destino final o ateísmo.

Mas isto também levanta a questão de saber se este destino final dá por sua vez lugar a outra coisa. Pois parece que no preciso momento em que o ateísmo alcançou o seu “zenite,” começou também imediatamente a esboroar-se. Estudos sociológicos recentes concluíram que apesar de a modernidade ter sem dúvida assistido a um afastamento de um comprometimento religioso baseado na tradição, isto não teve como resultado o ateísmo generalizado que muitos tinham previsto anteriormente. Na verdade, o ateísmo sem "papas na língua" continua a ser uma confissão minoritária, e o mundo ocidental moderno assistiu à proliferação de “espiritualidades” alternativas de vários tipos. Ao que parece, muitas pessoas sentem-se insatisfeitas com o ateísmo, enquanto “verdade final” sobre a condição humana. Isto pareceria delimitar a análise de Buckley da situação atual. Mas quer o ateísmo marque um telos final ou uma condição terminal, parece que a modernidade não é apenas uma sensibilidade mas também um processo, cuja culminar lógico acabará por ser o ateísmo. Quero agora ver a natureza desta progressão e o movimento pelo qual o pensamento moderno passou do teísmo para o ateísmo.

2. O desenvolvimento do ateísmo no pensamento moderno
Apesar de ultimamente ter sido posto em causa (como veremos), tem sido muito comum atribuir as origens da modernidade filosófica e teológica a René Descartes. A revolução cartesiana foi, com efeito, a rejeição de uma metodologia teológica. Essa metodologia, a que Tomás de Aquino dá corpo do modo mais abrangente, atribuía certamente um papel indispensável à razão humana, mas era um papel a exercer sempre no contexto da revelação divina, e a ela se submetendo. Para Tomás, tinha de ser assim porque a razão humana era, pela sua própria natureza, finita e limitada. A verdade (e Deus; para Tomás não há uma separação clara entre ambos), por outro lado, não era finita nem limitada, e consequentemente a razão humana nunca conseguiria articulá-la. Só complementada com a revelação divina poderia a razão humana ter a esperança de apreender algo da verdade divina. Descartes rejeitou esta metodologia centenária a favor do desenvolvimento de uma epistemologia e teologia baseadas apenas na razão. É claro que esta revolução não veio do nada, e só pode compreender-se apropriadamente no contexto das circunstâncias históricas em que Descartes escrevia.

Quando as Meditações de Descartes foram escritas, a Europa estava num estado de convulsões religiosas e políticas. A reforma tinha menos de um século, e a cristandade ainda não se tinha recomposto da fratura resultante. Para uma religião que tinha sempre dado tanta ênfase à universalidade da verdade, os efeitos psicológicos da reforma foram particularmente devastadores. A tradicional e distintiva aversão cristã ao pluralismo doutrinário significava que os dois lados da separação resultante da reforma não podiam senão olhar-se mutuamente como heréticos profundamente atolados no erro. Estas atitudes dificilmente permitiam uma atmosfera de paz mundial, e o resultado foi, pelo menos em parte, a Guerra dos Trinta Anos. Fosse qual fosse a tentativa para encontrar uma saída pacífica, a solução não se podia encontrar no apelo à revelação, escrituras e credos. Pois isto era precisamente o que estava em disputa, e os que disputavam apelavam às mesmas fontes ao articular as suas posições respectivas. O desafio, consequentemente, era desenvolver um método epistemológico universal que acarretasse um assentimento universal. A epistemologia de Descartes era uma tentativa de fazer precisamente isto. O conhecimento teológico não tinha em sentido algum qualquer privilégio e era objecto do mesmo método de dúvida radical que qualquer outra forma de conhecimento herdado. Tendo duvidado de tudo até ter chegado ao seu fundamento certo, aquilo de que não podia duvidar, o cogito, Descartes viu-se então na posição peculiar de ter de invocar Deus para dar segurança ao conhecimento do mundo exterior. Mantendo a sua proibição de apelar a uma revelação infundada, foi obrigado a estabelecer a existência de Deus numa base puramente racionalista, ensaiando uma versão descontextualizada do argumento ontológico de Anselmo. Face a isto, pode-se muito bem argumentar que Descartes tinha já inaugurado um enquadramento ateu, e que a sua invocação de Deus inseria uma categoria teológica alheia num enquadramento racionalista secular. Como tal, é um exemplo do que Wittgenstein chamaria mais tarde um “erro categorial,” isto é, a excisão de um conceito do seu meio linguístico natural para o inserir num enquadramento linguístico fundamentalmente alheio, resultando daí a distorção do conceito e o seu óbito final, se for suficientemente desarmonioso relativamente ao enquadramento em que está a ser inserido.

No final do séc. XVII, a epistemologia racionalista de Descartes foi muito atacada pelo filósofo empirista inglês John Locke, para quem o conhecimento e a verdade não se obtinham pelo exercício da razão, mas antes baseando todo o conhecimento nos dados empíricos dos sentidos. Mas, como Descartes, tentou introduzir à força o conceito teológico de Deus num enquadramento em que esse conceito não se dava bem. No caso de Locke, todavia, a incongruência entre o conceito de Deus e o enquadramento no qual esse conceito estava a ser inserido era ainda mais brutal do que para Descartes. Pois se Deus não é, em última análise, um conceito “racionalista,” então ainda menos é um conceito “empírico.” Na verdade, segundo o discurso teológico, Deus é precisamente o que é inempírico. Se, consequentemente, Deus tem de algum modo de se “fundamentar” numa base empírica, o resultado promete ser ainda menos afortunado do que para Descartes. Assim, Locke não só desenvolve uma série de argumentos intrincados e tortuosos a favor da existência de Deus numa base empírica, como argumenta que se pode chegar ao próprio conceito de Deus no interior de um enquadramento empírico. Sugere que os atributos de Deus são todos derivados de “Ideias, recebidas da Sensação e da Reflexão,” e que estas “ideias” são então projetadas no infinito de modo a chegar a um conceito de Deus que responda aos requisitos que o seu argumento cosmológico exige. Uma consequência destas tentativas de transladar um conceito teológico para enquadramentos fundamentalmente ateológicos foi uma concepção de teísmo suscetível de ser atacada em duas frentes particulares. Primeiro, um racionalismo ou empirismo consistentes parecia impedir qualquer conhecimento substancial de Deus, e, segundo, caso se desenvolvesse um conceito de Deus, parecia pouco mais do que uma hipóstase de conceitos racionais ou de realidades empíricas. Na verdade, Hume e Kant, primeiro, e Feuerbach e Marx, depois, tornaram estas vulnerabilidades muito claras.

A primeira dificuldade foi identificada por David Hume. O brilhantismo de Hume repousou no facto de estar disposto a enfrentar, sem hesitação, as implicações de uma epistemologia totalmente empírica. Hume viu que se o empirismo fosse adotado de modo consistente, isto teria como resultado raciocinar “meramente a partir dos fenômenos conhecidos, [abandonando] toda a suposição ou conjectura arbitrária,” de onde resultaria que nada se poderia conhecer que não derivasse da experiência sensível. Dado que o ramo da filosofia chamado “metafísica” consistia, por definição, no que não era empírico, isto queria dizer, para Hume, que não se poderia ter qualquer conhecimento da metafísica. Esta proibição alargava-se, mas não se restringia, ao teísmo. Hume viu o que Locke não vira: que o teísmo era fundamentalmente incompatível com o empirismo.

Reconhecendo também que Descartes e Locke estavam a tentar fazer o impossível, Immanuel Kant viu muito claramente que Deus teria de ser colocado para lá dos limites do conhecer humano, e não no seu interior. A escolha bem definida com que se confrontava era consequentemente entre passar completamente sem Deus (como Hume), ou deixar Deus a pairar agnosticamente para lá dos limites do conhecer humano. Optou pela segunda e, em resultado, a única coisa que “salvou” Deus de uma existência espectral de pura possibilidade foi a invocação de Kant do seu argumento transcendental. Deus era agora um “postulado prático necessário,” obrigatório para dar sentido à experiência humana da moralidade, mas afastado para o domínio do inconhecível númeno. Para Kant, temos agora de viver como se Deus existisse, mas a sua existência propriamente dita é algo que não pode ser conhecida nem demonstrada. Temos de supor necessariamente, segundo Kant, que Deus não é mera possibilidade, mas efetividade, ainda que a sua efetividade não possa ser estabelecida. Se isto é teísmo, é claramente um “teísmo ténue,” e apesar de haver quem ainda saúde Kant como um “salvador” do cristianismo do mundo moderno, torna-se necessário dizer que se trata de uma salvação muitíssimo precária. Consequentemente, não é surpreendente que os sucessores filosóficos de Kant se tenham inclinado para o ateísmo, seja ele real ou virtual.

Não se pode duvidar da “realidade” do ateísmo na obra dos chamados hegelianos de esquerda do séc. XIX. Retirando o que consideravam implicações da filosofia da história de Hegel, desenvolveram alguns dos elementos centrais desse sistema de um modo explicitamente ateu. Um dos mais proeminentes desses pensadores foi Ludwig Feuerbach, cuja crítica do teísmo cristão foi implacável. Feuerbach via o Deus cristão como uma amálgama incoerente de atributos pessoais, ativos e quase antropológicos, por um lado, e uma realidade última impessoal, perfeita, intemporal e imutável, por outro. Reconcebeu a teologia como antropologia, considerando os atributos tradicionais de Deus os melhores e mais elevados atributos da humanidade, personificados e projetados ao infinito para dar origem ao que se tornou conhecido como “teísmo.” A nossa doutrina de Deus, consequentemente, é na verdade uma doutrina disfarçada ou codificada da humanidade. Se, para Feuerbach, o teísmo era uma projeção da humanidade, para Karl Marx, como vimos, o teísmo era uma “ideologia,” um reflexo da base econômica. Por um lado, sancionava a ordem capitalista ensinando que toda a autoridade terrena é ordenada por Deus e que, por isso, a humanidade deve respeitá-la e obedecer-lhe. A hierarquia terrena tanto reflete a hierarquia divina como participa dela, atribuindo-se divinamente a cada pessoa o seu lugar apropriado. Por outro lado, o teísmo cristão servia também de compensação para quem ocupava uma posição inferior na hierarquia. Os seus rituais e consolos forneciam um refrigério do sofrimento terreno, assim como uma promessa compensadora de beatitude eterna. Para Marx, o colapso do capitalismo quereria dizer que tais funções, desempenhadas pela religião, deixariam de existir, pelo que esta desapareceria, natural e inevitavelmente.

Apesar de todas as suas diferenças, o que Feuerbach e Marx partilham é a convicção de que o teísmo é uma projeção ou hipóstase de realidades empíricas — sejam atributos humanos ou a base econômica; para eles, o teísmo é uma abstração injustificada dessas realidades. O diagnóstico que traçam parece muitíssimo pertinente se o teísmo em questão for o representado por Locke, por exemplo. Para Locke, como fizemos notar, o teísmo é uma projeção explícita de “ideias” humanas. Consequentemente, se o teísmo de Locke é representativo das concepções modernas de Deus, então as críticas de Feuerbach e Marx tornam-se tanto mais convincentes. Para compreender o ateísmo apropriadamente na história moderna e no pensamento moderno, é portanto necessário clarificar a concepção de Deus dominante neste período. Que Deus exatamente estava o ateísmo moderno a rejeitar?

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